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domingo, 10 de junho de 2018

RASTROS ESQUECIDOS - um conto de Lu Cavichioli

"Naquelas tardes de primavera eu costumava passear pela praia colhendo conchas e resgatando minhas lembranças. Meus pés ficavam naquela areia assim como minha juventude, deixada para trás.
Pensava como aquele lugar me fazia bem. Era exatamente na primavera que eu vinha passar férias com minha avó, e quando eu chegava, era como se fizesse parte do cenário, como uma pintura onde os matizes se fixam na tela e lá ficam para sempre."





Celine resolveu viajar para a ilha, estava cansada e meio que abandonada. Na verdade queria e precisava daquele lugar, como seus pulmões necessitam de oxigênio. Seus filhos estavam no exterior. O marido falecido há dois anos.
A ilha era exatamente o que ela buscava naquele momento, um pouco de paz e sossego. Tudo parecia estar como sempre foi. A casa da avó continuava situada no mesmo local, embora estivesse fechada e abandonada.
Era uma dessas casas revestidas de madeira, ladeada por pequenas cercas com um jardim na frente. Nos fundos estava o celeiro onde seu avô costumava guardar ferramentas, alimentos para os animais e outros utensílios.
O jardim estava tomado por um matagal. A madeira que revestia a parte externa do celeiro estava para despencar e uma boa parte do telhado havia desabado... Quanto trabalho teria. De certo precisaria contratar alguém para o serviço. A casa precisava de uma boa faxina  e de uma nova pintura também. O piso da sala era feito daquele assoalho onde passamos escovão para dar brilho.
O relógio com o pêndulo barulhento continuava na parede e o piano emoldurava o corredor.

Renovada pelo desejo de ficar, Celine comprou material de pintura e logo foi cobrindo a mobília com lençóis que achou na cômoda da avó. Era curioso como tudo estava exatamente como ela deixou naquela manhã que Deus levou sua alma para o céu... lembrava com carinho e pesar.
Forrou o assoalho com jornais velhos e logo iniciou a pintura.

Enquanto isso, na cidade, não se falava em outra coisa na que não fosse a presença de um homem estranho que chegara há uma semana e ninguém sabia nada sobre ele. Era um sujeito bronzeado, com cabelos e barba grisalhos e grandes olhos azuis. Aparecia sempre na hora do almoço e ali ficava a perambular com ares de capitão de fragata. Sim, parecia um homem do mar, e com certeza era.

Todos falavam dele... Cidade pequena, notícia espalhada!
O homem não dava atenção aos falatórios, e tão logo amanhecia já estava na praia com o barco cheio de peixes, tantos quantos sua rede pudesse aguentar. Esperava então os peixeiros, vendendo toda a remessa.

Alguns dias se passaram e a casa já estava quase pronta, somente o lado externo precisava de reparos, assim como o jardim.
À noite Celine lia e relia as cartas que recebia dos filhos, e lágrimas desciam-lhe pelo rosto, já com marcas do tempo. De repente ouviu um barulho que vinha do celeiro. Olhou pela janela e viu um dos varais balançando, e o cobertor que lá estava havia desaparecido.
Com medo, preferiu ficar dentro de casa a sair para verificar o que estava acontecendo.

No dia seguinte, correu até o celeiro e achou o cobertor jogado no chão, e vestígios de que alguém havia passado a noite lá. Pensou que como a casa estivesse fechada há uns cinco anos, alguém estivesse usando o celeiro para se abrigar, mas iria resolver isso mais tarde. Precisava agora contratar alguém que concertasse a porteira e o telhado.
Foi até a cidade comprar algumas mudas de flores, folhagens e algumas sementes de ervas frescas para replantar seu canteiro e o jardim da frente.
Todos comentavam a volta da neta de dona Olga... "viera sozinha" - ouvia-se! Onde estava o marido?
Talvez fosse divorciada...

Celine entrou no armazém, quando ouviu uma voz meio que conhecida:

-Bom dia Celine, não cumprimenta mais os amigos?
-Oh, desculpe, eu... quem... ROGÊ??? Olá, como vai, o que houve com sua perna?
O homem apoiava-se em muleta, pois só tinha uma das pernas.

-Tubarão! Foi há muitos anos.
Celine olhava com um misto de nojo e medo. Não gostava muito do jeito dele, aliás nunca  lhe deu confiança, embora ele conservasse uma paixão platônica por ela.
Logo despediu-se não dando muita conversa. Em seguida entrou no jipe com pressa.

(...) continua





PARTE II



Os dias passavam-se rapidamente e Celine decidiu mesmo ficar na ilha...  Entretida replantando suas novas mudas, não percebeu a presença de um homem a seu lado:

-Bom dia senhora, atrapalho?
Em um sobressalto, Celine virou-se e viu a figura de um homem rude, parecia que não dormia direito há dias e, curiosamente, vestia sua camisa que também havia sumido do varal na noite passada.

-O que quer, estou ocupada - respondeu lacônica.
_Trabalho. Conserto o celeiro em troca de comida e abrigo.
- Como se chama? Mora na ilha?
- Meu nome é Ted, moro aqui... ali...

O homem aparentava uns cinquenta e poucos anos. Via-se que era sozinho, talvez um mendigo.

Celine, desconfiada, revirou os olhos concordando... teve pena.

-Está bem. Tenho todo material necessário, venha eu lhe mostro.

O homem então começou o serviço, e como o fazia bem, com destreza e capricho.
Enquanto mexia no jardim, de longe, ela olhava sua fisionomia e algo lhe parecia familiar. Então resolveu caminhar até ele dizendo:

-Escute, pode ficar com o cobertor para se proteger, a noite é muito fria por aqui. Ah, e pode ficar com a camisa também, já que gostou dela.

Ted corou dizendo obrigado e pedindo desculpas.

Mais tarde levei o almoço pra ele e seus olhos invadiam os meus como se quisessem me dizer algo. Era muito estranha aquela sensação ...parecia que eu conhecia aqueles traços.


O celeiro estava parcialmente destruído e havia muito trabalho para fazer, inclusive retirar todo o lixo que ficou acumulado durante todos aqueles anos.
Ted subiu os degraus e já plantado nas vigas do telhado exibia seu peito atlético e viril, que Celine observava entre a cortina. Ele percebeu e olhou rapidamente não dando chance dela escapar. E um breve sorriso lhe saiu dos lábios indo de encontro ao de Celine. Tímidos, desviaram o olhar.

Ela temia aquela sensação, aquela lembrança nebulosa, e todos os dias o olhava sem que percebesse.

Uma noite, acordou transpirando, sentou-se ofegante sobre a cama. CELINE LEMBROU!
Lembrou daquele homem, com todo seu pavor e amor mesclado em lágrimas. Seu peito parecia que ia estourar e ela podia ouvir o louco ruído de seu coração.

-MEU DEUS... é ELE! O que farei? - Será que se lembra de mim? - Impossível...

Já não conseguia dormir. Convivia com Ted há um mês  e ele sempre lhe parecendo familiar... e agora, como um relâmpago - a lembrança definitiva! Estava na verdade castigado pelo tempo, mas guardava as feições da juventude marcada pela paixão. Ele era Teodoro, o grande amor da sua vida, o homem que ela nunca esqueceu.


(...) Continua



EPÍLOGO



...Q ela nunca esqueceu, e que naquele mesmo celeiro teve sua primeira noite de amor, às escondidas.

Pela manhã foi admirar o jardim, que já estava florido das novas mudas. O celeiro quase pronto, quando Ted a surpreendeu pelas costas:

-Bom dia senhora.
A respiração de Celine ficou ofegante. Fitou seus olhos e disse:
-Por que fugiu de mim?

Ted ficou sem ação tentando disfarçar.

-Então você se lembra? Eu pensava que nunca mais fosse vê-la, andei pela ilha toda à sua procura quase a vida inteira.
-Por que mudou de nome? O que houve?

Tinham muito o que dizer e assim foram caminhando pela praia...
-Está mais bonita, mais vistosa.

Celine sorriu suavemente - engano seu, talvez você veja dessa forma.
Suas mãos se uniram e foram caminhando naquele momento único e, a sensação era como se estivessem tido uma vida inteira juntos

Ted, ou melhor, Teodoro, era seu verdadeiro amor... um nome que ela escrevera em pétala de flor , adormecida em alguma página esquecida de um livro qualquer.

Então Ted contou tudo o que lhe tinha acontecido nesse tempo que ficaram separados. Fora acusado de abandono de embarcação e de sua tripulação numa tempestade em alto mar.

Com a tempestade veio o motim. Seu imediato queria desviar a rota a fim de roubar a carga valiosa que transportavam, iludindo alguns marujos com o intuito de recompensá-los. E assim se amotinaram. Não houve como evitar o naufrágio, salvando-se Teodoro e o imediato somente, e como a carga fora toda perdida, o imediato responsabilizou o Capitão.

Teodoro foi julgado pela corte marcial, entretanto conseguiu fugir... desaparecendo e dado como morto.
Hoje vive de um canto para outro, simplesmente como Ted, o pescador.

Celine ouviu tudo boquiaberta e com o coração dilacerado. Iam casar-se na época em questão, mas este incidente os separou em definitivo. Então ela retornou à capital, onde conheceu seu marido.

- Nunca deixei de te amar, Celine. Casei-me, não tive filhos, Luíza, minha esposa era estéril, fraca na saúde. A pobre morreu tuberculosa... - e você, casou-se?

- Não havia escolha. Meu pai arranjou-me um pretendente, mas nunca o amei, apenas me acostumei a ele. Era um bom homem, tratava-me bem e com muito carinho. Nos seus últimos dias de vida dispensei todos meus cuidados a ele. Fora vítima de um AVC que o paralisou, quase não falava direito, tinha que dar-lhe banho, alimentá-lo e outras tarefas. A vida foi passando, perdi meus pais, meus filhos foram para o exterior estudar, e o que restou foi a casa da ilha.

-Fale-me de seus filhos, eu os adotaria se pudesse - disse sorrindo com amor.

Celine baixou os olhos e sorriu timidamente parecendo ainda aquela adolescente.

-Sim, Enzo tem 32 anos, é o mais velho. Formou-se em Arquitetura, e Ana Clara, a caçula, está com 28 , é fotógrafa profissional, e seus trabalhos têm grande repercussão na Europa.

A ultima carta que recebi de ambos é que estavam juntos passando férias no Canadá. Eles costumavam vir nos natais, mas ultimamente são apenas suas letras impressas num frio papel que aqueço as vezes, quando me sinto única no mundo. Mas tenho meu trabalho, vivo das vendas e exposições de meus quadros, você sabe, sempre gostei de pintar. Tenho uma Galeria de Arte no Continente.



O tempo havia parado, bem ali na praia, parecendo um filme em sépia onde a platéia fosse somente o mar, seu grande expectador... Porém o destino ainda reservava mais surpresas, e dele não podemos fugir.

Foram para casa. O aroma do café invadia a varanda, quando Celine disse que tinha uma forte revelação a fazer. Ele ficou inerte ali, e meio que sem ação quando ela lhe disse:

- Ted, Enzo é seu filho. Lembra-se daquela noite  no celeiro... íamos nos casar em breve...

Ted ou Teodoro, agora já não importava, porque a felicidade invadia seu peito de tal forma que ele
desatou a correr em direção ao mar  pelas areias finas que subiam com a dança de seus pés, caindo de joelhos na orla.
Deus havia se lembrado dele e o presenteou com a semente do amor.

Agora ele era, simplesmente PAI!






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