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domingo, 10 de junho de 2018

RASTROS ESQUECIDOS - um conto de Lu Cavichioli

"Naquelas tardes de primavera eu costumava passear pela praia colhendo conchas e resgatando minhas lembranças. Meus pés ficavam naquela areia assim como minha juventude, deixada para trás.
Pensava como aquele lugar me fazia bem. Era exatamente na primavera que eu vinha passar férias com minha avó, e quando eu chegava, era como se fizesse parte do cenário, como uma pintura onde os matizes se fixam na tela e lá ficam para sempre."





Celine resolveu viajar para a ilha, estava cansada e meio que abandonada. Na verdade queria e precisava daquele lugar, como seus pulmões necessitam de oxigênio. Seus filhos estavam no exterior. O marido falecido há dois anos.
A ilha era exatamente o que ela buscava naquele momento, um pouco de paz e sossego. Tudo parecia estar como sempre foi. A casa da avó continuava situada no mesmo local, embora estivesse fechada e abandonada.
Era uma dessas casas revestidas de madeira, ladeada por pequenas cercas com um jardim na frente. Nos fundos estava o celeiro onde seu avô costumava guardar ferramentas, alimentos para os animais e outros utensílios.
O jardim estava tomado por um matagal. A madeira que revestia a parte externa do celeiro estava para despencar e uma boa parte do telhado havia desabado... Quanto trabalho teria. De certo precisaria contratar alguém para o serviço. A casa precisava de uma boa faxina  e de uma nova pintura também. O piso da sala era feito daquele assoalho onde passamos escovão para dar brilho.
O relógio com o pêndulo barulhento continuava na parede e o piano emoldurava o corredor.

Renovada pelo desejo de ficar, Celine comprou material de pintura e logo foi cobrindo a mobília com lençóis que achou na cômoda da avó. Era curioso como tudo estava exatamente como ela deixou naquela manhã que Deus levou sua alma para o céu... lembrava com carinho e pesar.
Forrou o assoalho com jornais velhos e logo iniciou a pintura.

Enquanto isso, na cidade, não se falava em outra coisa na que não fosse a presença de um homem estranho que chegara há uma semana e ninguém sabia nada sobre ele. Era um sujeito bronzeado, com cabelos e barba grisalhos e grandes olhos azuis. Aparecia sempre na hora do almoço e ali ficava a perambular com ares de capitão de fragata. Sim, parecia um homem do mar, e com certeza era.

Todos falavam dele... Cidade pequena, notícia espalhada!
O homem não dava atenção aos falatórios, e tão logo amanhecia já estava na praia com o barco cheio de peixes, tantos quantos sua rede pudesse aguentar. Esperava então os peixeiros, vendendo toda a remessa.

Alguns dias se passaram e a casa já estava quase pronta, somente o lado externo precisava de reparos, assim como o jardim.
À noite Celine lia e relia as cartas que recebia dos filhos, e lágrimas desciam-lhe pelo rosto, já com marcas do tempo. De repente ouviu um barulho que vinha do celeiro. Olhou pela janela e viu um dos varais balançando, e o cobertor que lá estava havia desaparecido.
Com medo, preferiu ficar dentro de casa a sair para verificar o que estava acontecendo.

No dia seguinte, correu até o celeiro e achou o cobertor jogado no chão, e vestígios de que alguém havia passado a noite lá. Pensou que como a casa estivesse fechada há uns cinco anos, alguém estivesse usando o celeiro para se abrigar, mas iria resolver isso mais tarde. Precisava agora contratar alguém que concertasse a porteira e o telhado.
Foi até a cidade comprar algumas mudas de flores, folhagens e algumas sementes de ervas frescas para replantar seu canteiro e o jardim da frente.
Todos comentavam a volta da neta de dona Olga... "viera sozinha" - ouvia-se! Onde estava o marido?
Talvez fosse divorciada...

Celine entrou no armazém, quando ouviu uma voz meio que conhecida:

-Bom dia Celine, não cumprimenta mais os amigos?
-Oh, desculpe, eu... quem... ROGÊ??? Olá, como vai, o que houve com sua perna?
O homem apoiava-se em muleta, pois só tinha uma das pernas.

-Tubarão! Foi há muitos anos.
Celine olhava com um misto de nojo e medo. Não gostava muito do jeito dele, aliás nunca  lhe deu confiança, embora ele conservasse uma paixão platônica por ela.
Logo despediu-se não dando muita conversa. Em seguida entrou no jipe com pressa.

(...) continua





PARTE II



Os dias passavam-se rapidamente e Celine decidiu mesmo ficar na ilha...  Entretida replantando suas novas mudas, não percebeu a presença de um homem a seu lado:

-Bom dia senhora, atrapalho?
Em um sobressalto, Celine virou-se e viu a figura de um homem rude, parecia que não dormia direito há dias e, curiosamente, vestia sua camisa que também havia sumido do varal na noite passada.

-O que quer, estou ocupada - respondeu lacônica.
_Trabalho. Conserto o celeiro em troca de comida e abrigo.
- Como se chama? Mora na ilha?
- Meu nome é Ted, moro aqui... ali...

O homem aparentava uns cinquenta e poucos anos. Via-se que era sozinho, talvez um mendigo.

Celine, desconfiada, revirou os olhos concordando... teve pena.

-Está bem. Tenho todo material necessário, venha eu lhe mostro.

O homem então começou o serviço, e como o fazia bem, com destreza e capricho.
Enquanto mexia no jardim, de longe, ela olhava sua fisionomia e algo lhe parecia familiar. Então resolveu caminhar até ele dizendo:

-Escute, pode ficar com o cobertor para se proteger, a noite é muito fria por aqui. Ah, e pode ficar com a camisa também, já que gostou dela.

Ted corou dizendo obrigado e pedindo desculpas.

Mais tarde levei o almoço pra ele e seus olhos invadiam os meus como se quisessem me dizer algo. Era muito estranha aquela sensação ...parecia que eu conhecia aqueles traços.


O celeiro estava parcialmente destruído e havia muito trabalho para fazer, inclusive retirar todo o lixo que ficou acumulado durante todos aqueles anos.
Ted subiu os degraus e já plantado nas vigas do telhado exibia seu peito atlético e viril, que Celine observava entre a cortina. Ele percebeu e olhou rapidamente não dando chance dela escapar. E um breve sorriso lhe saiu dos lábios indo de encontro ao de Celine. Tímidos, desviaram o olhar.

Ela temia aquela sensação, aquela lembrança nebulosa, e todos os dias o olhava sem que percebesse.

Uma noite, acordou transpirando, sentou-se ofegante sobre a cama. CELINE LEMBROU!
Lembrou daquele homem, com todo seu pavor e amor mesclado em lágrimas. Seu peito parecia que ia estourar e ela podia ouvir o louco ruído de seu coração.

-MEU DEUS... é ELE! O que farei? - Será que se lembra de mim? - Impossível...

Já não conseguia dormir. Convivia com Ted há um mês  e ele sempre lhe parecendo familiar... e agora, como um relâmpago - a lembrança definitiva! Estava na verdade castigado pelo tempo, mas guardava as feições da juventude marcada pela paixão. Ele era Teodoro, o grande amor da sua vida, o homem que ela nunca esqueceu.


(...) Continua



EPÍLOGO



...Q ela nunca esqueceu, e que naquele mesmo celeiro teve sua primeira noite de amor, às escondidas.

Pela manhã foi admirar o jardim, que já estava florido das novas mudas. O celeiro quase pronto, quando Ted a surpreendeu pelas costas:

-Bom dia senhora.
A respiração de Celine ficou ofegante. Fitou seus olhos e disse:
-Por que fugiu de mim?

Ted ficou sem ação tentando disfarçar.

-Então você se lembra? Eu pensava que nunca mais fosse vê-la, andei pela ilha toda à sua procura quase a vida inteira.
-Por que mudou de nome? O que houve?

Tinham muito o que dizer e assim foram caminhando pela praia...
-Está mais bonita, mais vistosa.

Celine sorriu suavemente - engano seu, talvez você veja dessa forma.
Suas mãos se uniram e foram caminhando naquele momento único e, a sensação era como se estivessem tido uma vida inteira juntos

Ted, ou melhor, Teodoro, era seu verdadeiro amor... um nome que ela escrevera em pétala de flor , adormecida em alguma página esquecida de um livro qualquer.

Então Ted contou tudo o que lhe tinha acontecido nesse tempo que ficaram separados. Fora acusado de abandono de embarcação e de sua tripulação numa tempestade em alto mar.

Com a tempestade veio o motim. Seu imediato queria desviar a rota a fim de roubar a carga valiosa que transportavam, iludindo alguns marujos com o intuito de recompensá-los. E assim se amotinaram. Não houve como evitar o naufrágio, salvando-se Teodoro e o imediato somente, e como a carga fora toda perdida, o imediato responsabilizou o Capitão.

Teodoro foi julgado pela corte marcial, entretanto conseguiu fugir... desaparecendo e dado como morto.
Hoje vive de um canto para outro, simplesmente como Ted, o pescador.

Celine ouviu tudo boquiaberta e com o coração dilacerado. Iam casar-se na época em questão, mas este incidente os separou em definitivo. Então ela retornou à capital, onde conheceu seu marido.

- Nunca deixei de te amar, Celine. Casei-me, não tive filhos, Luíza, minha esposa era estéril, fraca na saúde. A pobre morreu tuberculosa... - e você, casou-se?

- Não havia escolha. Meu pai arranjou-me um pretendente, mas nunca o amei, apenas me acostumei a ele. Era um bom homem, tratava-me bem e com muito carinho. Nos seus últimos dias de vida dispensei todos meus cuidados a ele. Fora vítima de um AVC que o paralisou, quase não falava direito, tinha que dar-lhe banho, alimentá-lo e outras tarefas. A vida foi passando, perdi meus pais, meus filhos foram para o exterior estudar, e o que restou foi a casa da ilha.

-Fale-me de seus filhos, eu os adotaria se pudesse - disse sorrindo com amor.

Celine baixou os olhos e sorriu timidamente parecendo ainda aquela adolescente.

-Sim, Enzo tem 32 anos, é o mais velho. Formou-se em Arquitetura, e Ana Clara, a caçula, está com 28 , é fotógrafa profissional, e seus trabalhos têm grande repercussão na Europa.

A ultima carta que recebi de ambos é que estavam juntos passando férias no Canadá. Eles costumavam vir nos natais, mas ultimamente são apenas suas letras impressas num frio papel que aqueço as vezes, quando me sinto única no mundo. Mas tenho meu trabalho, vivo das vendas e exposições de meus quadros, você sabe, sempre gostei de pintar. Tenho uma Galeria de Arte no Continente.



O tempo havia parado, bem ali na praia, parecendo um filme em sépia onde a platéia fosse somente o mar, seu grande expectador... Porém o destino ainda reservava mais surpresas, e dele não podemos fugir.

Foram para casa. O aroma do café invadia a varanda, quando Celine disse que tinha uma forte revelação a fazer. Ele ficou inerte ali, e meio que sem ação quando ela lhe disse:

- Ted, Enzo é seu filho. Lembra-se daquela noite  no celeiro... íamos nos casar em breve...

Ted ou Teodoro, agora já não importava, porque a felicidade invadia seu peito de tal forma que ele
desatou a correr em direção ao mar  pelas areias finas que subiam com a dança de seus pés, caindo de joelhos na orla.
Deus havia se lembrado dele e o presenteou com a semente do amor.

Agora ele era, simplesmente PAI!






Direitos Autorais adquiridos*

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Uma inspiração inusitada

Sabor Imortal





França – século XVIII

Mounsier Michel Le Roux pertencia à burguesia francesa, membro de uma classe social que lhe dava o poder de cidadania, conferindo-lhe certos privilégios sociais, políticos e econômicos.

Nascido em “Champagne” – uma cidade ao norte da França e que ficava a 145km a nordeste de Paris fez dele um produtor de vinhos, e havia nele uma particularidade exagerada em criar sabores especialíssimos para os nobres, e já estabelecido na vida com 35 anos de idade (ainda), queria formar uma família.
Em uma dessas noitadas com amigos, em um Boulevar au vin, ele
Conheceu Henriette Poison, de uma beleza extrema, a moça era cortejada em todo tempo.

Le Roux ficou tão encantado que começou a persegui-la por meses, tornando-se o guardião – como ela mesmo o chamava. Esse relacionamento ficara tão sério que em 1718 casaram-se em uma capela, an petit comitê em recepção fechada.

 A tal dama com quem ele casara era na verdade uma cortesã, já com 25 anos. Ficara órfã aos 10  e fora criada por uma pobre mulher que vivia de esmolas nas escadarias de Notre Dame, até que com 17 anos caiu na vida noturna de Paris.

Le Roux era tão encantado por ela que a amava mais que a si mesmo.
 Em uma dessas noites insones, ele sentou-se na cama e ficou admirando a beleza de sua esposa, que quando dormia possuía feições de anjo. E foi justamente nesse momento que lhe veio à mente uma ideia que, sem nunca poder imaginar, lhe traria mais poder e mais riqueza.

O que estaria pensando o jovem Le Roux?
E por que sua esposa seria o alvo dessa ideia?

França – século XXI

Isabelle de La Croix era proprietária de uma das pâtisseries mais charmosas de Montmartre – a La Petit Mitrons – uma doceria cor de rosa especializada em tortas doces, tendo como destaque a fruits-rouge.

Ela almejava também possuir uma Cave au Vin, e isso vinha lhe custando horas de trabalho a fio.

Em poucas semanas conseguiu um empréstimo e transformou uma velha Boulangeries em sua loja de vinhos, na charmosa Rue Montorguieil, onde o antigo proprietário lhe disse que ela fez um ótimo negócio, pois aquele prédio fora inaugurado pelo pâtisserie real em 1730, e que todo e qualquer turista que viesse a Paris, faria parada obrigatória, agora que tinha se tornado uma cave au vin. Se bem que com sua experiência com doces, poderia usar a parte da frente como uma pequena confeitaria. Quem sabe ela ampliaria seu negócio?

O interior da loja era em estilo “Belle Époque”, evocando a elegância das décadas passadas, visitadas por figuras ilustres, como nada mais nada menos que Coco Chanel e Audrey Hepburn.

Isabelle não entendia muito de vinhos, seus sabores e cores, e muito menos quais os tipos de pratos que poderiam acompanhar com uma boa taça de suas especialidades. No entanto, a moça tinha sorte mesmo, porque havia um amigo de faculdade que se tornou enólogo e que certamente seria seu sócio algum dia.

Em uma noite, os dois resolveram ficar após o expediente para fazerem uma listagem sobre o que deveriam vender e também abrir um dia por semana para degustação. Depois que fizeram um esboço de tudo, Isabelle pede a Gerard que coloque o lixo para fora. Mas antes, o rapaz foi até a porta dos fundos da loja para um cigarrinho e um minuto de descanso, e foi ali que ele fez uma descoberta valiosa.

Ao sentar-se em um caixote, relaxou fazendo pressão com as costas sobre uma antiga parede de tábuas. E logo que encostou desabou com caixote e tudo. Assustado gritou... rapidamente pegou seu celular e acendeu a lanterna, girando-o por todo o lugar.

O rapaz ficou estático e boquiaberto, abrindo e fechando os olhos, não acreditando naquilo que via. Gerard deparou-se com uma antiga adega, quase intacta e, que parecia ter sido construída há séculos. No entanto as prateleiras ainda estavam em seu devido lugar, cobertas por uma grossa camada de poeira e algumas teias de aranha... Para seu espanto, iluminou a prateleira mais próxima e viu que estava toda preenchida por garrafas deitadas em seu sono sepulcral.

Gerard continuou estático, coçando a barba cerrada e com os olhos ainda esbugalhados, resolveu puxar uma das garrafas. Delicadamente ela veio ao seu encontro e ele soprou para ver o rótulo, que infelizmente estava ilegível. Meneou a cabeça balbuciando algo como:
- Seria bom demais... Quase acreditei que realizaria meu sonho. Aliás...  acho que estou em um sonho.

De repente, ouve Isabelle chamar:
-Ei Gerard, onde você está? Resolveu ir embora e me deixar sozinha a estas horas?? Onde está seu maluco? – Belle gritou.
Um som abafado chegou até a moça e ela não compreendia porquê.
E novamente ele gritou:
-BELLE, venha até o fundo da loja, depressa.

Quando Isabelle chegou ao local, levou as mãos à boca arregalando os olhos de pavor.
-Gerard, cadê você?
- Estou aqui embaixo... venha que eu te seguro e ajudo a descer.
-Que lugar é esse? – Exclamou Belle muito assustada.
-Sei lá... encostei nas tábuas lá de cima e tudo desabou. Veja Belle, olhe bem de perto... Isso era uma adega, provavelmente do século XVII se não me engano. 

Estudo vinhos há anos e vi muitas desse tipo na internet.
_Mas, mas... por que não me informaram a respeito disso?
-Talvez não soubessem... E olha, se alguém desconfiasse, nunca teria vendido o prédio. Isso é uma mina de ouro, garota.

_Mina de ouro, essas velharias empoeiradas e fedidas?
- Ora Belle não seja ignorante, vamos sondar tudo amanhã bem cedo, e se eu estiver certo, ficaremos ricos minha amiga.

-Do que está falando seu maluco?
-Amanhã!

Isabelle não conseguiu dormir direito e logo cedo já estava na loja, embora ainda estivesse fechada para o público. Gerard chegou em seguida.
-Muito bem Gerard, pode começar a me explicar seus enigmas... Sabe que não gosto de decifrá-los.

-Sorrindo, o moço foi até a cozinha e enquanto preparava um cappuccino, contou uma história de amor para sua amiga.
-Sente-se Belle, aproveite seu cafezinho au chocololat  e ouça sobre uma pesquisa que fiz quando ainda estudava sobre vinhos e suas peculiaridades.

Certa vez li num artigo que um fidalgo da época tinha criado um vinho especialíssimo que conquistou toda Paris. Ele tinha criado um espumante, sendo que naquele tempo isso ainda não existia, mas como entendia de processos de fermentação, arriscou.

-E deu certo?
- Se deu certo? Ele ficou famoso por essa descoberta.
_ Mas não estou vendo nada de história de amor nisso.
Gerard sorriu – calma!!

Na verdade, ele criou o vinho em homenagem à sua esposa e o apresentou à sociedade local na festa de aniversário de seu primeiro ano de casamento. Fez tanto sucesso que a produção não vencia as vendas, e nem os pedidos comerciais.

Dando um gole generoso em seu cappuccino Belle exclamou ironicamente:
-Ah muito romântico né meu amigo...

_ Calma garota, tem mais!

Não enrola Gerard, quero descer na adega e ver o que vou fazer com toda aquela versão de vinhos/vinagres.

-AHAHAHAHAHAHAH – estou vendo que não entende nada de vinhos. As safras antigas são as melhores, meu bem.

Ahh chega disso, vou descer, você me acompanha?
_ Lógico! Mas você não quer saber o resto da história?

_ Não... outra hora, precisamos abrir a loja e ainda tenho que abastecer minha cozinha lá na doceria.
E lá se foram para a adega.
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Epílogo
Naquela manhã os dois amigos limparam  quase toda adega, e classificaram os vinhos por suas especialidades.
Gerard estava frustrado, mas ainda acreditava em suas convicções e  estudos. Ele não iria desistir.

Em um mês tudo estava em seu devido lugar. A loja de vinhos tinha uma ótima clientela, e em dias de degustação havia fila na rua e Belle ainda colocou mais lenha na fogueira, acrescentando alguns queijos que acompanhavam na degustação.

Tanta era a procura que aos domingos eles resolveram abrir a loja esticando até o sol se pôr, e nesse dia, somente Gerard foi trabalhar.
Quando fechou, ele não foi embora, desceu na adega e ali ficou, sentado, pensando... pensando e desejando que seu sonho se realizasse.

Aproveitou então para arrumar (ainda) umas caixas que não tiveram tempo de olhar, e que estavam em uma prateleira lateral, diferenciada das outras.
Entrementes Gerard dizia:

_ Bem, já que estou só, hoje vou dar cabo dessa prateleira, limpar, jogar esses caixotes podres no lixo e verificar esses vinhos que me parecem bem ruins, haja vista pelas garrafas tão envelhecidas. Se bem que tem somente duas aqui... bem estranho. Por que estariam escondidas nesse caixote? Ah, não importa acho que essas vão para o lixo. Belle vai gostar disso – sorriu com deboche puxando uma das garrafas.

Soprou, passou a mão no rótulo e novamente teve aquela sensação estática, porém multiplicada por mil.
Suas pernas falharam e ele quase caiu ali mesmo, e num misto de terror e alegria, gritou:
_ SOU O HOMEM MAIS SORTUDO DO MUNDO!!

Gerard deparou-se com um vinho que tinha por nome – BRÜT LE ROUX – 1880 – ESPUMANTE ROSÈ – e mesmo que estivesse quase ilegível ele decifrou o tesouro que tanto procurava há anos e que pensava que não existisse mais, e que somente em suas pesquisas pudesse ver o rótulo de que tanto o deixou perplexo, sem contar no sabor que provavelmente o deixaria em êxtase.

Rótulo e conteúdo – Joia rara em tempos modernos.

Simplesmente porque nesse rótulo estava impressa a foto de Madame Le Roux ...
Henriette Poisson Le Roux, - a cortesã que transformou a vida de um dos maiores produtores de vinho da época e que tornou seu sabor tão imortal quanto sua beleza.


·        ** Nota da autora:

·         Esse conto foi inspirado em uma garrafa que eu fiz, mais especificamente pela imagem em decoupagem.

·         Os trechos em negrito foram extraídos do livro “ Minha Doce Paris”, com o único objetivo de ilustrar meu texto – evidenciando estabelecimentos e seus nomes totalmente verídicos.

·         Os personagens são todos fictícios.

Lu Cavichioli
Janeiro/2018

sábado, 20 de abril de 2013

A Mansão dos Gatos


ATO  I -  A DESCOBERTA




De longe eu avistava os portões. Era de um azul macilento, exibindo letras góticas ,bordadas no cinza esbranquiçado gasto pelo tempo.

Eu caminhava rápido, sentindo o hálito cruel da noite que engolia as batidas sôfregas do meu coração. O vento penetrava meus ossos, fazendo gemer as articulações quando me dei conta que estava plantado em frente ao casario.

De construção lúgubre, oferecia aos olhos um espantoso cenário do mais nobre terror hollywoodiano. Forcei os portões que abriram sem nenhuma resistência, e um raio laminal   deu-me boas vindas. Meio atordoado pelo estrondo percebi uma escada que dava certamente para a sala principal. Gritei então um ô de casa e fui entrando, e logo ouvi um gélido: BOA NOITE!!!!!! No alto da escada vi uma mulher de corpo longilíneo, cabelos cor do fogo, curtos e meio tosados, trazendo nos braços um raro e assustador espécime de gato persa. Fiquei hipnotizado por alguns segundos, meus olhos rodopiaram e logo a maquiavélica figura se fazia presente na minha frente. Dei um salto para trás, quando ela perguntou: - O que quer?

Sua cabeça -  eu disse, em tom metálico, ainda duvidando disto. Então aqueles olhos bruxuleantes sorriram diante da minha persona, agora patética, convidando-me para o jantar.

 

ATO II – A LAZANHA

 

Quando entrei na cozinha avistei sobre o guarda comidas um felino negro com esmeraldas no olhar que resolveu encarar-me na sua totalidade, quase que impedindo minhas ações. Sentei-me e logo senti o aroma da iguaria que estava sendo retirada do forno.

Fumegando, a travessa foi colocada sobre a mesa, e logo fui avisado que era uma lazanha vegetariana, pois um dos convidados não comia carne. CONVIDADOS?  Como assim?

Com toda sua falsa delicadeza  e  pernas de saracura , a dona da casa, recebeu mais duas pessoas, e todos nos sentamos para degustar o prato.

O jantar não foi tão ruim, mas já trabalhei com melhores. O importante é que estava ali e teria que cumprir minha missão.

 
 

ATO III – PÊLOS  NO SOFÁ

 
Moncye, como era conhecida a dona da casa, falava agora de poesia. Eu ria interiormente, ouvindo suas críticas embasadas em comentários filosóficos de quem lê Neruda em espanhol. E eu, parado, pregado no sofá, sorvia o frio negrume do café requentado.

Quando percebi que minha calça, casaco e todo o resto naquela sala estavam atolados em pêlos, de várias cores e tamanhos, eles dançavam no ar, provocando minha rinite e  paciência.

Os outros dois convidados, um homem de estatura mediana, barba serrada, pele rugosa e rosada e com seqüelas de acne, ria muito, enquanto a mulher ao lado dele, metida num tomara que caia branco, ostentando cabelos negros escorridos e tímidos segurava um angorá branco  embalando como um recém-nascido. Eu olhava tudo com nojo e arrependimento, porém algo me dizia que seria interessante eu continuar ali colhendo dados importantes para minha pesquisa.
 

ATO IV – O REBENTO MALVADO


Logo depois do café com gato, a porta se abriu e com ela uma rajada de vento que colocou para dentro mais um personagem. Entrou meio aturdido com cara de boneco de mola e olhos de bolas de gude mesclados em verde azulado. Usava uma calça jeans surrada e uma camiseta colada ao corpo revelando uma saliência abdominal adquirida provavelmente por litros de coca-cola e alguns big-macs.

Logo a mãe coruja ora felina, nos apresentou sua cria que sorriu realçando a brancura dos dentes, dizendo um olá a todos e logo desaparecendo escada acima.

 

ATO V – PORTENHOS NO QUINTAL


Para completar a cena, a campainha gritou. Eu estava na cozinha tentando investigar pistas e colhendo dados para meu artigo abstrato, porém concreto em meu cérebro refinado, quando ouvi um sotaque galego... cocei a fronte revirando os olhos, pigarreando.

 Logo avistei no hall dois homens e uma mulher de aparência cigana, desses que leem a mão, adivinhadores da vida alheia. Fomos apresentados enquanto os gatos miavam eriçando pêlos e unhas. Com o estômago revirado fui levado para o quintal  abraçado pelo homem de rosto rosado com cicatrizes de acne , levado pela mão por sua amiga tímida.

Não sei o que havia escondido naquele quintal, só sei que todos estávamos ali agora em meio a vasos e plantas, e uma tartaruga imaginária que insistia em se esconder entre as folhagens.


Eu olhava com asco aqueles ciganos de aparência seborréica. Tinham os cabelos compridos e despenteados. A mulher vestia saia longa e solta, florida em sua totalidade, exibia também um corpete branco cheio de laçarotes. Os homens, dominados pelo cigarro, falavam baixo e rápido e em sua linguagem portenha eu nada podia entender. Pareciam maltrapilhos. Usavam chinelos ou sandálias(até hoje não sei bem o que era aquilo), de um tecido rugoso e  de tons acastanhados. Um deles usava uma boina típica do Che Guevara.

A cena final caracterizou-se desta forma: Os três maltrapilhos sentados no chão, a dona da casa na soleira da porta, e eu e os convidados apoiados na mureta que embutia o bujão de gás.

Na cozinha os gatos e a lasanha.


EPÍLOGO


De repente fui convidado a visitar o andar superior. Passei em frente a uma estante onde tranquilamente dormiam dois felinos, um branco e um malhado. Eram desses gatos vira-latas que miam para a lua e gemem de madrugada debaixo das janelas.

Sem demora subi as escadas acompanhada da saracura e da tímida que me  levaram até o computador onde tive que ler alguns poemas anárquicos, escritos devassos que sutilmente à primeira vista revelavam um lirismo tosco.

Enfim,  e já sem tempo, as despedidas!! Saí exatamente como entrei. Assustado e só, nem desconfiando que  alguns anos à frente,  eu iria descobrir tudo sobre a colecionadora de gatos.

 by Lu C.

*direitos reservados*