"Tudo o que vemos ou parecemos / não passa de um sonho dentro de um sonho."
Edgar Allan Poe
Cena I
A Casa
Judy e Rubem decidiram que era chegada a hora de morar
no campo, ter uma horta, um pomar e poder desfrutar da calmaria às seis da
tarde tomando chimarrão na varanda apreciando a revoada de andorinhas e um por
de sol que fosse tão somente deles.
O casal tinha dois filhos: Ludmila com dezessete e
Nicolas de nove.
Ludmila achou ótimo ter uma casa no campo e quem sabe
(finalmente), seus pais a deixariam em paz e nem colégio ela precisasse mais
frequentar. Já para Nicolas o novo e o
desconhecido eram seu infortúnio porque teria que deixar seus amigos e o time
de futebol da escola.
Rubem encontrou uma casa já bem antiga no alto da
Colina dos Eucaliptos e encantou-se por ela. Era uma construção sólida com três
andares, revestida de pedra polida e fincada no meio do terreno. Em volta muito
verde e pássaros à vontade sobrevoando a propriedade. Exatamente como ele
sonhara.
Logo que vinha pela estrada de terra batida avistou a
pequena serra que o levaria a Colina. A estrada era sinuosa, cheia de cascalhos
e ladeada por canteiros naturais onde brotavam folhagens selvagens e flores do
campo.
Ao estacionar sua caminhoneta percebeu que o corretor
já estava à sua espera.
Cumprimentaram-se e foram entrando pela entrada
principal cuja porta era de ferro feito origamis entrelaçados e havia outra
portinhola de vidro por dentro que possuía uma tranca, possibilitando deixar o
vidro entreaberto conservando a de ferro fechada.
A sala era ampla e mobiliada conferindo ao local, três
ambientes distintos. Alguns dos sofás precisava urgente de reforma e a pintura
estava descascada havia tempo.
A cristaleira, por incrível que possa parecer estava
intacta e recheada de taças coloridas e lapidadas. Havia algumas
tapeçarias na sala de estar que faziam
escurecer o ambiente e que Judy certamente as removeria.
O assoalho de tábuas largas em madeira de pinho escuro
estava riscado e coberto por uma névoa de poeira e a mesa da sala de jantar só
tinha uma das partes, já que era de vidro e os cacos (ainda) estavam sobre o assoalho.
O corretor tentou driblar esses detalhes:
_Como o senhor vê, a propriedade é muito boa,
confortável e muito arejada - veja- somente nesta sala temos seis janelas
Enormes, todas
envidraçadas com entremeios de madeira e que facilmente abrem sobre os
trilhos... (que estavam todos enferrujados) , e todas as salas possuem um
diferencial - dizendo e apontando para os
arcos marmorizados que serviam como entremeios para as salas.
--Ah, mas claro Sr Ferreira, a casa é ótima, só precisa
de alguns reparos - disse em tom jocoso meneando a cabeça.
Vamos à cozinha, preciso saber como ela está porque
Judy hoje não pode vir e vai certamente crivar-me de perguntas.
-Ora, pois não senhor, vamos até lá, siga adiante.
A cozinha estava toda equipada .O fogão e a geladeira
eram embutidos e muito antigos, além de estarem imundos.
Os armários
exibiam uma crosta acastanhada de gordura acumulada e as dobradiças estavam
todas despencando. A pia era larga com duas cubas e o tampo era de granito
bege.
A coifa estava bem grudenta e os azulejos que eram brancos estavam mais
para um marrom nojento.
O piso era antigo, feito de lajotas bege e vinho e a janela sobre a pia ainda
conservava uma cortina de voil que um dia foi branca e iluminada na
transparência do tecido.
Depois de olhar os banheiros no andar térreo, subiram a
escadaria de madeira que rangia um pouco e isso desagradou Rubem que revirou os
olhos torcendo os lábios para o corretor. No andar superior havia um mezanino
vazio, somente com um tapete abandonado e uma vidraça estilhaçada onde o sol
pintava de laranja as paredes em tardes de verão.
Seguiram então pelo corredor onde avistaram os
dormitórios, amplos e ensolarados. Sorte a deles porque a primavera já
despontava e tudo iria ficar florido e alegre.
Os quatro dormitórios eram suítes e estavam sem
mobília bastante judiados pelo tempo que
a casa ficara fechada. As paredes estavam manchadas de fuligem e Rubem
estranhou aquilo, perguntando:
_O que houve aqui? Essa fuligem... Parece-me que aconteceu
um incêndio por aqui...
_Imagine senhor, é mofo. A casa permaneceu fechada por dez
anos.
Rubem perguntou sobre a parte hidráulica e elétrica e o
corretor coçou a nuca em tom duvidoso.
_ Já sei, já sei - disse Rubem - isso fica por conta do
novo proprietário, não é mesmo?
Rindo-se pelas costas e pensando nos cifrões que iria
gastar ali.
É senhor,
desculpe... Não há como fugir!
Mais tarde, a família toda estava na colina observando
a casa e todos mostravam uma animação para a reforma, menos Ludmila que
continuava com seu fone de ouvido e um pequeno gravador nas mãos. Ela tinha a
estranha mania de gravar tudo que via e ouvia. E quando se sentia só e frustrada gravava também sua
voz chorosa e falava sempre em sua morte que seria (para ela), prematura.
Ludmila era sombria e pálida. Seus cabelos eram negros
e caíam em cachos até o meio das costas. Vestia-se de preto e tinha um rosto
triste e desconsolado.
Seus pais tentaram de tudo pra que ela mudasse, mas em
nada resultou e eles largaram mão.
Aonde ela ia levava aquele gravador e nele guardava
suas angústias.
(...continua no ícone das páginas ao lado)
Autoria by Lu Cavichioli